sábado, 23 de janeiro de 2010

Sobre o Haiti

Artigo do Eduardo Galeano escrito antes do terremoto.

A maldição Branca

Eduardo Galeano


No dia 1º de janeiro de 2004, a liberdade cumpriu dois séculos de vida no mundo. Ninguém reparou, ou quase ninguém.
Poucos dias depois, o país do aniversário, o Haiti, passou a ocupar algum espaço nos meios de comunicação; não pelo aniversário da liberdade universal, mas sim porque ali se desencadeou um banho de sangue que acabou despachando o presidente Aristide.
O Haití foi o primeiro país a abolir a escravatura. No entanto as enciclopédias mais difundidas e quase todos os textos escolares atribuem à Inglaterra essa honra histórica.
É verdade que um belo dia o império que havia sido campeão mundial do tráfico negreiro mudou de opinião; mas a abolição britânica ocurreu em 1807, três anos depois da revolução haitiana, e foi tão pouco convincente que em 1832 a Inglaterra teve que voltar a proibir a escravatura.
Nada de novo no aviltamento do Haití. Há séculos que é desprezado e castigado. Thomas Jefferson, prócer da liberdade e proprietário de escravos, advertia que do Haití vinha um mau exemplo; e dizia que era preciso "confinar a peste a essa ilha". O país ouviu-o.
Os Estados Unidos demoraram sessenta anos a outorgar reconhecimento diplomático à mais livre das nações.
Entretanto, no Brasil, chamava-se haitianismo à desordem e à violência. Os donos dos braços negros salvaram-se do haitianismo até 1888. Nesse ano, o Brasil aboliu a escravatura. Foi o último país do mundo.
O Haití voltou a ser um país invisível, até à próxima carnificina.
Enquanto esteve nas pantalhas e nas páginas, no princípio deste ano, os media transmitiram confusão e violência e confirmaram que os haitianos nasceram para fazer bem o mal e para fazer mal o bem.
Desde a revolução para cá, o Haití apenas foi capaz de oferecer tragédias. Era uma colónia próspera e feliz e agora é a nação mais pobre do hemisfério ocidental.
As revoluções, concluíram alguns especialistas, conduzem ao abismo. E alguns disseram, e outros sugeriram, que a tendência haitiana ao fratricídio provém da herança selvagem que vem de África. O mandato ancestral. A maldição negra, que empurra para o crime e o caos.
Da maldição branca não se falou.
A revolução francesa aboliu a escravidão, mas Napoleão ressuscitou-a:- Qual foi o regime mais próspero para as colónias?- O anterior- Pois então restabeleça-se
E, para reimplantar a escravidão no Haití, enviou mais de cinquenta navios cheios de soldados. Os negros amotinados venceram a França e conquistaram a independência nacional e a libertação dos escravos.
Em 1804, herdaram uma terra arrasada pelas devastadoras plantações de cana de açucar e um país queimado pela guerra feroz. E herdaram "a dívida francesa".
A França cobrou caro a humilhação infligida a Napoleão Bonaparte. Acabado de nascer, o Haití teve que comprometer-se a pagar uma indemnização gigantesca, pelo mal que fez ao libertar-se.
Essa expiação do pecado da liberdade custou-lhe 150 milhões de francos ouro.
O novo país nasceu estrangulado por essa corda atada ao pescoço: uma fortuna que actualmente equivaleria a 21.700 milhões de dólares ou a 44 orçamentos totais do Haití dos nossos dias.
Muito mais de um século levou a pagar a dívida, que os juros da usura iam multiplicando.
Em 1938 chegou, finalmente, a redenção final. Nessa altura já o Haití pertencia aos bancos dos Estados Unidos.
Em troca dessa maquia a França reconheceu oficialmente a nova nação. Nenhum outro país a reconheceu. O Haití nascera condenado à solidão.
Nem sequer Simón Bolivar a reconheceu, ainda que tudo lhe devesse. Barcos, armas e soldados foram-lhe oferecidos pelo Haití em 1816, quando Bolívar chegou à ilha, derrotado, e pediu apoio e ajuda.
O Haití deu-lhe tudo, com a única condição de que libertasse os escravos, uma ideia que até então não lhe tinha ocorrido.
Depois, o senhor triunfou na sua guerra de independência e expressou a sua gratidão enviando a Port-au-Price uma espada de presente. De reconhecimento, nem falar.
Na realidade as colónias espanholas que tinham passado a ser países independentes continuavam a ter escravos mesmo que algumas tivessem, aliás, leis que o proibiam.
Bolivar ditou a sua em 1821, mas a realidade não se deu por satisfeita,
Trinta anos depois, em 1851, a Colômbia aboliu a escravatura; e a Venezuela em 1854.
Em 1915, os marines desembarcaram no Haití. Ficaram dezanove anos. A primeira coisa que fizeram foi ocupar a alfândega e a repartição de cobrança de impostos. O exército de ocupação reteve o salário do presidente haitiano até este se resignar a assinar a liquidação do Banco da Nação, que se converteu em sucursal do City Bank de Nova Iorque... O presidente e todos os outros negros estavam proibidos de entrar nos hotéis, restaurantes e clubes exclusivos do poder estrangeiro. Os ocupantes não se atreveram a restabelecer a escravatura, mas impuseram o trabalho forçado nas obras públicas.
E mataram muito. Não foi fácil apagar os focos de resistência.
O chefe guerrilheiro, Charlemagne Péralte, cruxificado contra uma porta, foi exibido, como aviso, na praça pública.
A missão civilizadora terminou em 1934. Os ocupantes retiraram-se deixando em seu lugar uma Guarda Nacional, fabricada por eles, para exterminar qualquer possível assomo de democracia.
Fizeram o mesmo na Nicarágua e na Repúlica Dominicana.
Algum tempo depois Duvalier foi haitiano de Somoza e Trujillo.
E assim, de ditadura em ditadura, de promessa em traição, foram-se somando as desventuras e os anos.
Aristide, o padre rebelde, chegou à presidência em 1991. Durou poucos meses. O governo dos Estados Unidos ajudou a derrubá-lo, levou-o, submeteu-o a tratamento e uma vez reciclado devolveu-o, nos braços dos marines, à presidência.
E de novo ajudou a derrubá-lo, neste ano de 2004, e de novo houve mortandade.
E de novo voltaram os marines, que regressam sempre, como a gripe.
Porém os peritos internacionais são muito mais devastadores que as tropas invasoras. País sumbetido às ordens do Banco Mundial e do Fundo Monetário, o Haití obedecia às suas ordens sem tugir. Pagaram-lhe negando-lhe o pão e o sal. Congelaram-lhe os créditos, apesar de ter desmantelado o Estado e ter liquidado todas as taxas aduaneiras e subsídios que protegiam a indústria nacional.
Os agricultores de arroz, que eram a maioria converteram-se em mendigos ou balseros. Muitos foram e continuam a ir parar ao fundo do mar das Caraíbas, porém esses náufragos não são cubanos e raras vezes aparecem nos diários.
Agora o Haití importa todo o arroz dos Estados Unidos, de onde os peritos internacionais, que são gente bastante distraída, se esqueceram de proibir as taxas aduaneiras e os subsídios que protegem a produção nacional.
Na fronteira onde termina a República Dominicana e começa o Haití, há um grande cartaz que avisa: O mau passo.
Do outro lado está o inferno negro. Sangue e fome, miséria, peste.
Nesse inferno tão temido, todos são escultores. Os haitianos têm o costume de recolher latas e ferros velhos e com antiga mestria, recortando e martelando, as suas mãos criam as maravilhas que se oferecem nos mercados populares.
O Haití é um país atirado ao vasadouro, por eterno castigo da sua dignidade.
Ali jaz como se fosse sucata. À espera das mãos da sua gente.
Eduardo Galeano